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Inclusão da primeira infância em projetos urbanos

2 de junho de 2020

Temos realidades bem distintas porque temos cidades diferentes dentro de um mesmo raio urbano, isso é evidente e acomete a todas as pessoas que dividem uma mesma cidade. Algumas percebem mais as diferenças socioespaciais existentes e outras menos, isso é natural. Olhando pro urbanismo e tendo de fato contato com a cidade temos o privilégio de percorrer diferentes cenários e participar um pouquinho da realidade de cada uma.

Colocar-se na realidade do outro, diversificar a visão e, a partir disso, criar uma cidade mais justa e inclusiva é o desafio urbanismo do século XXI. Mas, neste processo, parece haver ainda a exclusão de uma parcela importante da sociedade: as crianças. Segundo alguns autores, vivemos num momento de desaparecimento da infância, devido a fatores diversos; crianças pobres que precisam trabalhar e se distanciam da infância de maneira precoce e crianças ricas, tão ocupadas em atividades obrigatórias no dia-a-dia, que mais parecem adultos (IANISKI, 2009). O modelo de sociedade vigente, do consumo e da falta de tempo, criou cidades especialmente perigosas e desconectadas da infância.

Por outro lado, as crianças, como seres mais livres e sensíveis, ainda não inseridas no cenário da alta performance da sociedade, ainda estão com os sentidos e  capacidades em formação, não é? Então a cidade também precisa funcionar como equipamento de inclusão, oferecendo condições para o desenvolvimento dessas capacidades e acolhimento dos pequenos, para além da casa. Afinal, desde o seu primeiro dia de vida, e até mesmo antes do nascimento, a criança já se desloca pela cidade. No entanto, o deslocamento e a experiência infantil no meio urbano não são prioridade; nas estatísticas sobre mobilidade, por exemplo, o número de crianças que se deslocam à pé nem chega a ser categoricamente contabilizado (REGALDO, 2015).

Projeto da Lazo em Recife-PE

No Brasil, acidentes matam diariamente 12 crianças e hospitalizam 335, em média, segundo a Organização Não Governamental (ONG) Criança Segura. De acordo com a entidade, foram 3.661 mortes de crianças decorrentes de acidentes registradas em 2017, o último ano com dados consolidados. Este é só um dos aspectos relevantes ligados diretamente à mobilidade e a experiência da criança na cidade. Quantas crianças vão a pé para a escola no Recife? é provável alguém que pense rapidamente chegar a conclusão que são poucas e, de fato, não se tem precisão nos dados estatísticos. Mas, por observação, sabe-se que cerca de dois milhões e duzentas mil crianças e adolescentes descolam-se todos os dias para as escolas estaduais em Pernambuco e, que, uma parcela significativa destas, fazem o percurso totalmente ou parcialmente a pé. Também é verdade que esta realidade altera-se conforme a classe social e bairro em questão, outras tantas milhares de crianças deslocam-se diariamente apenas em automóveis para cumprir suas atividades e a conclusão se faz relevante: crianças de classes mais altas trafegam menos a pé, enquanto crianças de classes mais baixas deslocam-se mais em modais não motorizados e coletivos.

No entanto, pesquisas apontam que a dependência do carro e a exposição ao tráfego afetam a percepção da criança, isolando-a, não só física, mas mental e afetivamente, de seu entorno (APPLEYARD). Se, de um lado temos uma parcela da população infantil que sofre as consequências que um modelo de cidade que prioriza o carro aventurando-se entre o perigo da violência urbana e das estatísticas de atropelamento. Do outro, tem-se a população infantil que tem seu desenvolvimento físico-mental prejudicado por não experienciar, descobrir e se afeiçoar pela cidade para além da janela do carro. Também é importante observar como estas escolas, públicas ou privadas, estão conectadas à malha urbana, se facilitam a chegada e saída dos pequenos ou se restringem ainda mais as possibilidades. Ou seja, “a exclusão, a inviabilidade de sua (as crianças) participação ativa na cidade, antecede até mesmo condições econômicas e sociais” (REGALDO, 2015), ainda que haja diferenças entre elas.

Outras questões, ainda mais profundas, somam-se a essa discussão, como a reflexão de que exclusão das crianças na cidade quer dizer também a exclusão das mulheres, uma vez que em sua vasta maioria as mulheres ainda assumem os cuidados principais com as crianças. Somado a este pensamento, temos a importante constatação de que os espaços precisam levar em consideração as qualidades femininas também. Vemos em nossas cidades locais carregados de símbolos masculinos, propagandas, formas. Logo, a questão de cidades seguras  e inclusivas para crianças tangência,entre outras questões, a inclusão de mulheres em diversos espaços.

Para além do âmbito da mobilidade, no projeto arquitetônico e urbanístico, é questão urgente ter em mente o corpo infantil no uso do espaço. É importante observá-las no uso da rua, da praça, do parque, dos equipamentos e sempre que possível ouvi-las ativamente para a construção de espaços convidativos e seguros. O estímulo a experiência confortável e segura do espaço urbano, promove comportamentos semelhantes, bem como a o estímulo a espaços hostis, promove comportamentos hostis.

Alguns exemplos de boas práticas para inclusão de crianças em nossos projetos são: elevação das vias do entorno, afastamento dos estacionamentos do contorno das praças, brinquedos que estimulam o livre brincar, espaços para a amamentação segura, mobiliários para a reunião de pessoas no espaços e o convite com o acesso em design universal, que garanta a autonomia no desenvolvimento de todas as crianças.

Considerar os estímulos sensoriais e de equilíbrio para a primeira infância é outro detalhe importante, trazendo a experiência da casa, este espaço de conforto psíquico, para a cidade. O uso de materiais naturais, como tecido, madeira nos brinquedos, paredes laváveis para pintura livre e diversos tipos de superfícies para exploração; segurança de estar livre no espaço. O olhar atento para crianças enquanto agentes ativos dos espaços e da vida urbana é extremamente importante. Afinal, uma cidade segura e convidativa para as crianças, será boa para todos. No processo projetual, colocar-se no lugar da criança, experimentar e brincar, é coisa séria.

Texto convidado de:

Tâmara Maysa e Isadora Melo (Lazo Arquitetura)